ARTIGO
Cuidado: substantivo, adjetivo ou interjeição é zelo dos preocupados, dedicação,proteção. Atenção, tomar conta, acolher. Cuidado é o princípio que norteia essa lei. Evoluir a clínica, fazer do intratável o tratável. É essencial o apoio social e familiar que influencie comportamentos, mude hábitos, confronte preconceitos. Dedicada a cidadãos enfermos vistos como sem vontade, não é a doença mental que a lei questiona, mas a maneira de tratá-la.
A sociedade faz-se progressista na área de saúde por atitudes, mais do que por atos e quando aceita inscrever o doente mental na história da saúde pública. A doença mental não é contagiosa, dispensa isolamento. É o avanço da medicina que permite a reinserção social, restitui o indivíduo, sua alma e desejos, ao mundo dos vivos livrando-o do ambiente carceral.
Acolhimento,tratamento precoce melhoram o acompanhamento da doença. Agir antes do surto para não ferir. Sintomas físicos, queixas, mal-estar, sempre foram indícios de várias enfermidades. Estar atento à escuta geral dos sintomas – embrulho dos orgãos, ruídos da adolescência, álcool, droga, conflito de gerações, esquisitices, vazio existencial, impaciência com o diferente. A doença não é um fracasso nem produz estatuto de exilado. A internação é uma parte do tratamento, mas não seu sinônimo e o conceito de leito, nesse caso, não se harmoniza com a terapia adequada. A internação como privação da liberdade, monoterapia, só prevalece em serviços despreparados.
Enfim, todos os doentes são beneficiários do ambiente jurídico oriundo da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão.
“Se eu soubesse de alguma coisa útil à minha nação que fosse danosa a uma outra, eu não a proporia, porque sou homem antes de ser nacional ou ainda porque sou necessariamente homem, não sendo nacional senão por acaso. Se soubesse de alguma coisa que me fosse útil e prejudicial à minha família, meu espírito a rejeitaria. Se soubesse que alguma coisa que fosse útil à minha família e que não o fosse à minha pátria, buscaria esquecê-la. Se soubesse de alguma coisa que fosse útil à minha pátria e que fosse prejudicial ao meu continente ou que fosse útil ao meu continente e prejudicial ao gênero humano, eu a veria como um crime”. É de Montesquieu o espírito da lei.
Paulo Delgado – Primeiramente, a possibilidade de que os pacientes internados possam ter um novo modelo de atenção ao seu problema. E a idéia de que a psiquiatria sozinha não resolve os problemas: é preciso medicação, mas é preciso, principalmente, o acolhimento e a inserção social do paciente.
Acredita que a lei está vencendo o preconceito contra o portador de transtorno mental ou ele ainda é forte na sociedade brasileira?
É muito forte. Entre os doentes, (o paciente de transtorno mental) é a maior vítima de preconceito. Então é preciso que essa lei seja aplicada também pelo lado dos direitos humanos. Todos que sofrem têm direito de ser respeitados no seu tratamento.
Como está a implantação de hospitais-dia e Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) no país?
Hoje, os CAPS já passam de mil em todo o Brasil (para uma lei que existe há apenas oito anos...). E já há um número grande de hospitais-dia também. Mas é preciso ter a enfermaria psiquiátrica nos hospitais gerais, e é preciso ter atenção aos postos de saúde. O profissional de saúde deve estar perto do paciente. Quanto mais perto do paciente, menos ele sofre, e menor será a possibilidade de ter medo da sua doença e de assustar os seus familiares.
A cobertura já é suficiente para atender as necessidades e os direitos previstos pela lei?
Não, a lei é uma transição: o velho não predomina, mas o novo ainda não domina. Eu ainda tenho muita esperança, porque o Ministério da Saúde vem mantendo uma continuidade na aplicação da lei. Esta lei é do governo passado, mas isso não é um problema de política de governo, é um problema do Estado brasileiro. O Estado que não respeita os doentes do país é um Estado que não se respeita. Então, eu tenho muito entusiasmo com a política de saúde mental, porque ela é muito criticada, mas está avançando. Cada ano está melhor do que no ano anterior.
Que desafios ainda resistem ao processo de humanização do tratamento psiquiátrico?
Primeiro, a psiquiatria tradicional: a universidade não se abre para ensinar aos estudantes de medicina uma psiquiatria mais moderna. Segundo, os grandes hospitais psiquiátricos que funcionam por leito – e leito não é um conceito adequado para o tratamento de doença mental. O doente mental precisa de espaço, precisa de área, e de atenção. Precisa de circulação e não de detenção. E, em terceiro lugar, o preconceito geral da sociedade, porque nela existem dois tipos de preconceito: um é o de achar que o doente mental é perigoso, e aí as pessoas têm medo da doença. E a outra é a pressão econômica em cima dos doentes, dos não produtivos. A sociedade em busca de lucro, e a pessoa que tem um ritmo diferente, é mais lenta, dispersiva, sonhadora – e às vezes nem são sonhadores, coitados; às vezes não têm nem tempo de sonhar. Essas pessoas não são muito compreendidas.
O poeta Ferreira Gullar fez uma crítica à Lei 10.216, como você reagiu a ela?
Ele disse que é pai de dois pacientes e que sofre com a dificuldade no tratamento de seus filhos. Então ele escreveu mais como pai do que como poeta. Eu tenho que compreender, e espero que ele encontre um serviço adequado. Ele está desesperado porque encontrou serviços despreparados. Onde o serviço é bem preparado, capaz e protegido pela política pública, o que tenho visto é a lei ter dado muito certo. Eu, por exemplo, não gostaria de ser internado se precisasse. Eu sempre preferi o tratamento aberto e acho que qualquer pessoa deve pensar que um dia pode precisar de um tratamento – e é bom que seja em um serviço aberto.
Jornalista Responsável: Profª Izaura Rocha
Bolsista: Aryela Ferreira e Priscila Mendes – 3º período de Jornalismo
Fotos: Henrick Macedo e Wanessa de Castro – 1º período de Jornalismo
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